A grande cantora Fafá emerge no mar de Chico
Título: Tanto Mar
Artista: Fafá de Belém (em fotos de Mauro Ferreira)
Local: Mistura Fina (RJ)
Data: 23 de janeiro de 2009
Cotação: * * * * 1/2
Em cartaz em 24, 30 e 31 de janeiro de 2009
Em 2005, ao completar 30 anos de carreira fonográfica, Fafá de Belém abordou a obra de Chico Buarque num disco, Tanto Mar, que, embora bom, deixou a sensação de que poderia ser melhor - impressão ampliada a partir da estréia do show, que, depois de percorrer o Brasil, está de volta à cena carioca, neste e no próximo fim de semana, para aquecer a cantora e sua entrosada banda para a gravação do DVD, prevista para este semestre em São Paulo (SP). Tanto Mar retorna ao Rio de Janeiro - em frente à orla de Ipanema - em sua forma mais exuberante. E o tempo tem feito bem à voz de Fafá. Na reestréia do show na noite de 23 de janeiro de 2009, na casa Mistura Fina, a cantora emergiu em sua face mais grandiosa no mar de músicas de Chico Buarque, várias (Olha Maria, Vida, Bastidores, Gota d'Água) especialmente talhadas para cantoras de registros intensos e teatrais - como Fafá.
Num roteiro sem concessões (todas as músicas são da lavra nobre de Chico), a novidade foi Todo o Sentimento, cantada por Fafá num tom emocionado, mas contido, sem os excessos vocais que, na reestréia, apareceram apenas ao fim do Fado Tropical. E o fato é que, sempre que poda esses excessos que habitualmente dão caráter over às suas interpretações, Fafá retoma seu lugar de honra no vasto panteão das cantoras brasileiras. No atual show, músicas como As Vitrines e Eu te Amo - que entrou no roteiro em 2006, no meio da turnê - ganham interpretações à altura de seus melhores registros. Em total interação com a banda que destaca o pianista João Rebouças e o estreante (no show) Zé Canuto, hábil na flauta e no sax, Fafá alterna interpretações pontuadas por vivacidade (Tanto Mar), exuberância (Olhos nos Olhos), ternura (Dans Mon Coeur, a versão em francês de Terezinha que abria o CD e que, no show, abre o bis) e até ironia, exemplificada tanto pelo caco ("Fala, sério!") inserido nos versos resignados de Com Açúcar, com Afeto - tocado pela banda num clima de sambossa - como pelo tom e gestual críticos imprimidos ao registro de Mulheres de Atenas, emendada num mix perfeito com Angélica, cuja letra foi escrita por Chico em tributo à estilista Zuzu Angel (1923 - 1976), cujo filho, Stuart Angel, foi morto pelo regime militar. Antes de cantar Angélica, Fafá faz discurso em que traça paralelo entre a violência política dos anos 70 e a violência atual gerada pelo tráfico de drogas e seus regimes oficiosos. É quando surge em cena a artista e cidadã militante que subiu aos palanques dos anos 80 para lutar pela implantação da democracia no Brasil.
Os arranjos do maestro João Rebouças resultam especialmente inventivos no samba Desalento - que ganha pulsação crescente, acompanhada pelo toque preciso da bateria de Ricardo Costa - e em Construção, música desconstruída num brilhante arranjo de clima jazzy que consegue a proeza de dissociar Construção da genial orquestração original do maestro Rogério Duprat (1932 - 2006). É o impactante número final. Mas Fafá sai mesmo de cena, já no bis, ao som de Sob Medida, o bolero que ela tomou para si ao gravá-lo em 1979 e que revive com caras, bocas e poses. É momento lúdico de show azeitado que mostra que, quando quer, Fafá de Belém sabe fazer emergir a grande cantora que já andou afundando por aí por conta de discos e repertórios equivocados...