Resenha de DVDTítulo: Mulher 80Artista: váriosGravadora: Biscoito Fino/ Som LivreCotação: * * * *Por mais que seja datado por celebrar conquistas femininas já bem assimiladas pela sociedade machista, o programa Mulher 80 - ora lançado em DVD com o registro deste especial criado pelo diretor Daniel Filho e exibido pela Rede Globo na noite de 16 de dezembro de 1979, no rastro do sucesso da série Malu Mulher - é documento perene e ainda sedutor da explosão feminina que deu o tom da música brasileira naquele ano. Foi em 1979 que despontaram Ângela RoRo, Marina Lima e Joanna - três nomes presentes no elenco recrutado por Daniel, diretor da série e do especial - e foi também em 1979 que Gal Costa, Maria Bethânia, Rita Lee e Simone ampliaram seus públicos. Gal vivia resplandecente fase tropical. Bethânia saboreava o primeiro milhão de discos vendidos com o emblemático Álibi (1978). Rita tornava seu rock mais pop com a parceria com Roberto de Carvalho, emplacando naquele ano um dos sucessos atemporais da dupla, Mania de Você. Simone explodia em todo o Brasil com Começar de Novo, a música encomendada a Ivan Lins por Daniel para ser o tema de abertura de Malu Mulher. Como o diretor conta (sem citar nomes) na reveladora entrevista exibida nos extras do DVD, Simone não era a primeira opção para gravar a música de Ivan e Vítor Martins, oferecida originalmente (e isso Daniel não conta...) a Maria Bethânia, que, na época, nem ouviu tal canção, alegando já ter alinhavado todo o repertório de seu próximo disco (diz a lenda que ela teria se arrependido amargamente ao conhecer a música). Daniel também não cita nomes, mas as duas cantoras que não se falavam era Bethânia e Elis Regina (1945 - 1982) - e coube ao diretor omitir o estranhamento na edição do número final, em que todas as cantoras apareceram reunidas no palco do Teatro Fênix.
Foi nesse contexto favorável que Mulher 80 foi idealizado e gravado com a apresentação da atriz Regina Duarte, intérprete da socióloga que dava nome à série Malu Mulher. De acordo com Daniel Filho e com Guto Graça Mello, diretor musical do especial, a seleção das músicas e cantoras teria sido feita com base na prévia seleção feita para a trilha sonora do seriado, o que explicaria a ausência de nomes como Elba Ramalho, Fátima Guedes e Zizi Possi - também projetadas naquele fértil ano em que as mulheres dominavam a cena - e a omissão de sambistas como Beth Carvalho, também em fase de grande popularidade. E o fato é que o especial é retrato bem acabado daquele boom feminino e feminista de 1979. Somente o número coletivo, em que todas as intérpretes entoam Cantores do Rádio (Alberto Ribeiro, João de Barro e Lamartine Babo, 1936), já vale a edição do programa em DVD pela imagem histórica, que, como todas do DVD, merecia ter passado por processo de restauração, embora não apresente má qualidade técnica - assim como o áudio original, bem conservado.
Questões técnicas à parte, o acerto do especial reside também no fato de entrelaçar os números musicais com depoimentos em que as cantoras acabam se expondo. Geralmente travada, Elis se emociona ao falar da filha Maria Rita, então com dois anos, antes de aparecer cantando O Bebâdo e a Equilibrista no palco em que apresentava o show Elis, Essa Mulher, inspirado no homônimo disco de 1979 em que, a pedido da gravadora Warner Music, adotou imagem mais feminina, com os cabelos mais longos. Em cenário adornado com almofadas e velas, em clima baiano, Bethânia admite a gangorra emocional que molda seu temperamento. "Deve ser difícil conviver comigo", supõe a Abelha Rainha, antes de interpretar Álibi (Djavan) na companhia do saudoso violão de Rosinha de Valença (1941 - 2004). Simone, que abre o especial com Começar de Novo, expõe a consciência de sua força física viril. Zezé Motta - então desenvolvendo uma carreira de cantora que se tornaria espaçada a partir dos anos 80 - chora ao lembrar da morte do pai na noite em que recebeu seu primeiro prêmio. Na flor de seus 22 anos, Marina justifica seu despojamento e liberdade joviais (ainda incomuns na época) antes de apresentar Não Há Cabeça com o piano de uma contrariada Ângela RoRo, de cara amarrada por não ser ela a intérprete da própria música. Mas, como ratifica Guto Graça Mello em entrevista dos extras, Mulher 80 teria reproduzido a escalação anterior da trilha de Malu Mulher. É por isso que Feminina, música de Joyce, de teor condizente com o espírito libertário da época, não é apresentada pela autora, mas pelo Quarteto em Cy (com adição da atriz Narjara Turetta, intérprete de Elisa, a filha de Malu na série). O número, aliás, foi gravado no cenário do seriado.
Além de mostrar uma Gal Costa no auge da fase tropical arquitetada pelo empresário Guilherme Araújo (1936 - 2007), Mulher 80 flagra também cantoras que migrariam para terrenos populistas nos anos seguintes. Emoldurada por cenário regional, Fafá de Belém, grávida da filha Mariana, entoa Que me Venha Esse Homem. Joanna - novata no mercado fonográfico, com uma chama que pareceu ter se apagado ao longo dos anos - interpreta Seu Corpo, a canção de Roberto e Erasmo Carlos que ela regravara em seu primeiro LP, editado naquele ano. Enfim, por mais que esteja definitivamente atrelado a um momento e a um contexto específicos, Mulher 80 ainda cativa pela emoção atemporal que brota das falas e dos cantos daquelas vozes que o programa reuniu de maneira antológica. Nunca a música brasileira foi tão feminina.