Resenha de RecitalTítulo: Bethânia e as Palavras - Leituras
Artista: Maria Bethânia (em fotos de Mauro Ferreira)
Local: Teatro Fashion Mall - Sala 1 (RJ)
Data: 2 de setembro de 2010
Cotação: * * * * 1/2
Em cartaz no Teatro Fashion Mall (RJ), de sexta-feira a domingo. De 3 de setembro até 12 de setembro de 2010
Invertendo a estrutura habitual dos roteiros de seus shows, nos quais a música é apresentada com eventuais declamações de poemas, Maria Bethânia volta aos palcos com recital em que a poesia é a senhora da cena e a música entra como o aperitivo que aguça e sublinha o sentido do que é dito/lido. Em cartaz no Rio de Janeiro até 12 de setembro de 2010, Bethânia e as Palavras - Leituras é um recital de estrutura simples que se engrandece em cena pela força e habilidade da intérprete com as palavras lidas ou cantadas. Sintomaticamente, Sentimentos do Mundo foi o nome do ciclo de conferências da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que em 2009 originou este projeto que já transitou por Brasília (DF), Portugal e pelo próprio Rio de Janeiro (RJ) - em leituras na PUC e na Casa do Saber - e que agora retorna, com roteiro mais estruturado, à cena carioca já com o justo status de espetáculo. A grandeza dessa produção tão pequena - em que Bethânia divide o palco nu e escuro com o violonista Luiz Brasil e o percussionista Carlos César - vem da capacidade da intérprete de pôr nas palavras os sentimentos do mundo, despertando no público tamanha gama de emoções que o resultado foi dezenas de olhos marejados ao fim da pré-estreia feita em 2 de setembro para os convidados da cantora, jornalistas e alunos de escolas cariocas.
Em cerca de 1h10m, o roteiro costura quase 70 números, entre trechos de poemas, de músicas, de livros - aliás, a leitura de breve passagem de Grande Sertão: Veredas é um dos momentos de maior voltagem emocional - e de textos em prosa no qual Bethânia explica a origem e a natureza do recital. Na abertura, a percussão sutil de Carlos César abre caminho para que a intérprete entre em cena cantarolando, sem microfone, versos de Iansã (Caetano Veloso e Gilberto Gil). Segue-se discurso em favor da educação e da poesia que deságua na declamação dos versos de Comida (Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto). A partir daí, o curso do recital revolve águas já passadas em shows e discos da artista em ondas de emoção que vão delineando uma atmosfera toda especial. Lidas ou (en)cantadas, as palavras ganham vida e sentimentos na voz soberana da artista. Certa de que "o palco é um lugar de aprendizado", como diz em cena, a Abelha Rainha adoça corações com o mel de palavras que abordam com poesia até a dureza do cotidiano do sertão nordestino - mote da parte inicial do roteiro. Palavras que, na sequência, fazem o ouvinte viajar pelo universal mundo português de Fernando Pessoa (1888 - 1935) e seus heterônimos - um trecho instrumental de Os Argonautas (Caetano Veloso) assinala a entrada no território lusitano - e que, mais tarde, retornam à aldeia de Bethânia, Santo Amaro da Purificação (BA), a cidade do interior baiano onde, através de seu professor Nestor Oliveira, a artista travou seus primeiros contatos com o universo das palavras. Trecho de Ciclo - versos de Nestor que foram musicados pelo mano Caetano - sublimham a memória afetiva de tempos cantados em Genipapo Absoluto (Caetano Veloso), número musical de grande força no recital ao qual se segue outro instante divino, Poema do Menino Jesus, recitado na íntegra, como Bethânia fez em espetáculos antológicos como Rosa dos Ventos (1971) e Maricotinha (2001). Coisa de Deus!
Espetáculo de natureza interiorizada, Bethânia e as Palavras se exterioriza em Cálix Bento (Domínio público), número em que a artista puxa as palmas da plateia. Mas são as emoções de dentro que moldam o espetáculo a partir das sofisticadas costuras dos poemas com as músicas. Alinhar o trecho final de João Valentão (Dorival Caymmi) com alguns versos de Pátria Minha (Vinicius de Moraes) é exemplo desse refinamento que envolve a plateia numa espiral de sentimentos que vão se desenrolando à medida em que a intérprete lê poemas de Cacaso (Há uma Gota de Sangue no Cartão Postal...), Fausto Fawcett (Encontro ou Amor) e Paulo Leminski (Um Deus Também É um Vento...), autores bem menos recorrentes nos roteiros da artista. Nem o chato pito passado por Bethânia no violonista Luiz Brasil já ao fim da pré-estreia - por ele ter se esquecido de sublinhar com o violão os trechos de alguns poemas - empanou o brilho de momento sagrado em que a artista, dona da cena, reiterou o dom teatral de comunicar sentimentos armazenados desde os tempos em que vivia na sua aldeia santo-amarense. Sentimentos do mundo que atravessam fronteiras e, através da voz e da alma da luminosa intérprete, proporcionam uma inesquecível viagem ao universo interior de cada espectador.