Resenha de ShowTítulo: Canibália
Artista: Daniela Mercury (em fotos de Mauro Ferreira)
Local: Canecão (RJ)
Data: 21 de agosto de 2009
Cotação: * * * *
Em cartaz no Rio de Janeiro (RJ) até 23 de agosto
Com a liberdade antropofágica já permitida pelo tropicalista título do show Canibália, Daniela Mercury acentua a miscigenação de seu baticum afro-pop-baiano em espetáculo que resulta vibrante pela pegada percussiva da banda e pelo uso generoso de um corpo de bailarinos que dão movimento e colorido aos três blocos do roteiro em esfuziante interação com a cantora. A mistura é fina. A batida do samba-reggae se integra com bases eletrônicas sem, contudo, fazer a artista tirar o pé da Bahia, a "terra da felicidade", saudada logo na citação de Na Baixa do Sapateiro (Ary Barroso) que abre o roteiro após (tribal) número inicial de dança e batuque.
Canibália remete muito ao espetáculo anterior de Daniela, Balé Mulato (2006), quando celebra a negritude no medley Preta, que une Eu Sou Preto (Jota Velloso e Mariene de Castro) com Sorriso Negro (Jorge Portela e Adilson Barbado). As coreografias sempre eletrizantes dos dançarinos nesse número fazem de Canibália um verdadeiro balé mulato. Na sequência, Preta Pretinha entra em cena para reforçar o orgulho da negritude que dá o tom da música brasileira. Novos e velhos baianos se irmanam em roteiro que celebra o samba da terra de Dorival Caymmi (1914 - 2008) ao mesmo tempo em que propaga o atual pagode soteropolitano, representado pela citação de Sou Favela, o sucesso do grupo Parangolé. Mas a base que sustenta Canibália é a batida do samba-reggae. Daí a saudação a grupos afros como Ilê Aiyê (Ilê Pérola Negra, com um arranjo similar ao do show Eletrodoméstico, registrado por Daniela em 2002, em CD e DVD da série MTV ao Vivo) e Olodum (Olodum É Rei, tributo prestado na abertura do terceiro bloco). Sempre entre a tradição e a modernidade, Daniela sampleia a voz de Carmen Miranda (1909 - 1955) em O que É que a Baiana Tem? - o tema de Caymmi que é revivido num misto de samba e twist - e faz seu carnaval eletrônico ao fim do show com Oyá por Nós, a parceria com Margareth Menezes que bebe tanto nas fontes do afro-pop-brasileiro como na levada do drum'n'bass.
O cenário de Gringo Cardia contribui para o colorido do show. E, justiça seja feita, grande parte da magia de Canibália vem da eletricidade exibida por Daniela Mercury em cena. Apesar das múltiplas referências do roteiro, o calor da artista uniformiza o repertório e até disfarça o caráter mediano de algumas músicas inéditas (A Vida É um Carnaval, Trio em Transe) que compõem o repertório do CD Canibália, nas lojas em setembro de 2009. Novidade da safra autoral do álbum, o reggae Sol do Sul celebra o suingue tropical que irmana povos e ritmos da América Latina. Sem esquecer a mãe África, de cuja Angola vem o ritmo e a dança do kuduro que pontuam Quero a Felicidade. Com o suingue da cor, a baiana se aventura ainda a cantar Legião Urbana (Tempo Perdido), Raul Seixas (Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás) e Belchior (Como Nossos Pais) num bloco de energia mais roqueira que se sustenta na imediata empatia do público com músicas que já estão na memória afetiva dos brasileiros. No bis, o choro Tico-Tico no Fubá e Quero Ver o Mundo Sambar acentuam a intenção de Canibália de deglutir referências planetárias sem tirar o pé do chão nacional. E, por mais que tais citações sejam múltiplas e rápidas, tudo se irmana no suinge sedutor desse balé mulato que celebra a mistura brasileira com todas as liberdades tropicalistas.