28 de setembro de 2008

'Palavra' encanta ao relacionar música e poesia

Resenha de filme
Título: Palavra Encantada (Brasil, 2008)
Direção: Helena Solberg
Argumento: Marcio Debellian
Cotação: * * * * 1/2
Em exibição no Festival do Rio 2008 (Mostra Première Brasil)
* 29 de agosto de 2008, Estação Vivo Gávea 3 (15h40m e 22h10m)

"Não tenho pretensão de ser chamado de poeta. Não sou poeta", isenta-se Chico Buarque em depoimento para o filme Palavra Encantada, instantes depois de outro grande letrista da música brasileira, Paulo César Pinheiro, sentenciar que nenhum poeta tem autoridade para questionar o status de poeta ao qual Chico faz jus - na opinião de Pinheiro. Ao discutir a relação entre música e poesia, por meio de uma série de saborosos depoimentos, o documentário de Helena Solberg e Marcio Debellian encanta os admiradores da poética música brasileira com narrativa sedutora.

Aberto pela voz de Adriana Calcanhotto, que entoa a canção medieval Chanson Doil Moz Son Plan et Prim, numa referência aos trovadores provençais, Palavra... encanta porque explana o tema sem didatismo e sem tomar posição de nenhuma corrente de pensamento. "A vida é curta", diz Calcanhotto, espirituosa, ao evitar entrar na discussão se letra de música é poesia. Mas o fato é o que tema inflama. Tanto que Chico Buarque lembra que o poeta João Cabral de Melo Neto (1920 - 1999) recusou de início a idéia de os versos de sua Morte e Vida Severina serem musicados pelo então inexperiente Chico (Cabral se renderia ao sucesso da peça).

Pelo teor dos depoimentos, Palavra Encantada oferece bom painel da evolução da poesia na música brasileira. O próprio Chico Buarque ressalta o valor da obra intuitiva de compositores sem formação literária, oriundos dos morros cariocas, como Cartola (1908 - 1980). "Cartola talvez fosse poeta se não tivesse o recurso musical", acredita Chico. A propósito, Martinho da Vila - com visão crítica que, às vezes, escasseia nos depoimentos - lembra que a violência diluiu a força poética da música feita no morro, hoje dominado pelo funk e pelo rap. "O rap é a continuação do cordel", defende convicto o rapper Ferréz, lembrando a vertente nordestina da música brasileira também valorizada por Arnaldo Antunes. "Sempre fui fascinado pelos cantadores do Nordeste. Parece que aquilo é milenar...", suspeita Antunes, com reverência.

Se o filme peca por não dar a palavra aos repentistas, ele acerta ao destacar - por meio de depoimentos de nomes como o compositor Luiz Tatit - o papel do Tropicalismo na ruptura das tradições poéticas da canção brasileira. "Você ouve uma música do Djavan e às vezes nem sabe do que ele está falando", exagera Tatit, exemplificando o uso da liberdade poética conquistada pelos tropicalistas e usufruida até hoje pelos compositores. É quando Lenine entra em cena para cantar Meu Amanhã, música cuja letra foi construída com base nas sonoridades das palavras. E, se o assunto é poesia na música, não poderiam faltar um depoimento de Antonio Cícero (que recita Eu Vi o Rei, poema musicado por Marina Lima) e uma menção especial a Dorival Caymmi (1914 - 2008), visto e ouvido cantando O Mar num raro take de 1940. "É preciso ficar de pé para falar de Caymmi. Dorival Caymmi é como Guimarães Rosa: é um Brasil bruto, puro, iluminado. Caymmi é o céu e a terra", reverencia Maria Bethânia, intérprete que sempre conjugou música e poesia em seus shows e - por isso mesmo - tem presença destacada em Palavra Encantada, inclusive lendo poema de Fernando Pessoa, Eros e Psiquê, especialmente para as câmeras dirigidas por Helena Solberg. "Eu cheguei a Fernando Pessoa via Maria Bethânia", relata Calcanhotto, que, assim como abre, encerra Palavra Encantada com registro inédito de Minha Música. Enfim, trata-se de filme delicioso que torna leve uma discussão que, em abordagem mais acadêmica, soaria chata...

8 Comments:

Blogger Mauro Ferreira said...

"Não tenho pretensão de ser chamado de poeta. Não sou poeta", isenta-se Chico Buarque em depoimento para o filme Palavra Encantada, instantes depois de outro grande letrista da música brasileira, Paulo César Pinheiro, sentenciar que nenhum poeta tem autoridade para questionar o status de poeta ao qual Chico faz jus - na opinião de Pinheiro. Ao discutir a relação entre música e poesia, por meio de uma série de saborosos depoimentos, o documentário de Helena Solberg e Márcio Debellian encanta os admiradores da poética música brasileira com narrativa sedutora.

Aberto pela voz de Adriana Calcanhotto, que entoa a canção medieval Chansong d'Ol Moz Son Plan e Prim, numa referência aos trovadores provençais, Palavra... encanta porque explana o tema sem didatismo e sem tomar posição de nenhuma corrente de pensamento. "A vida é curta", diz Calcanhotto, espirituosa, ao evitar entrar na discussão se letra de música é poesia. Mas o fato é o que tema inflama. Tanto que Chico Buarque lembra que o poeta João Cabral de Melo Neto (1920 - 1999) recusou de início a idéia de os versos de sua Morte e Vida Severina serem musicados pelo então inexperiente Chico (Cabral se renderia ao sucesso da peça).

Pelo teor dos depoimentos, Palavra Encantada oferece bom painel da evolução da poesia na música brasileira. O próprio Chico Buarque ressalta o valor da obra intuitiva de compositores sem formação literária, oriundos dos morros cariocas, como Cartola (1908 - 1980). "Cartola talvez fosse poeta se não tivesse o recurso musical", acredita Chico. A propósito, Martinho da Vila - com visão crítica que, às vezes, escasseia nos depoimentos - lembra que a violência diluiu a força poética da música feita no morro, hoje dominado pelo funk e pelo rap. "O rap é a continuação do cordel", defende convicto o rapper Ferréz, lembrando a vertente nordestina da música brasileira também valorizada por Arnaldo Antunes. "Sempre fui fascinado pelos cantadores do Nordeste. Parece que aquilo é milenar...", suspeita Antunes, com reverência.

Se o filme peca por não dar a palavra aos repentistas, ele acerta ao destacar - por meio de depoimentos de nomes como o compositor Luiz Tatit - o papel do Tropicalismo na ruptura das tradições poéticas da canção brasileira. "Você ouve uma música do Djavan e às vezes nem sabe do que ele está falando", diz Tatit, exemplificando o uso da liberdade poética conquistada pelos tropicalistas e usufruida até hoje pelos compositores. É quando Lenine entra em cena para cantar Meu Amanhã, música cuja letra foi construída com base nas sonoridades das palavras. E, se o assunto é poesia na música, não poderiam faltar um depoimento de Antonio Cícero (que recita Eu Vi o Rei, poema musicado por Marina Lima) e uma menção especial a Dorival Caymmi (1914 - 2008), visto e ouvido cantando O Mar num raro take de 1940. "É preciso ficar de pé para falar de Caymmi. Dorival Caymmi é como Guimarães Rosa: é um Brasil bruto, puro, iluminado. Caymmi é o céu e a terra", reverencia Maria Bethânia, intérprete que sempre conjugou música e poesia em seus shows e - por isso mesmo - tem presença destacada em Palavra Encantada, inclusive lendo poema de Fernando Pessoa, Eros e Psiquê, especialmente para as câmeras dirigidas por Helena Solberg. "Eu cheguei a Fernando Pessoa via Maria Bethânia", relata Calcanhotto, que, assim como abre, encerra Palavra Encantada com registro inédito de Minha Música. Enfim, trata-se de filme delicioso que torna leve uma discussão que, em abordagem mais acadêmica, soaria chata.

28 de setembro de 2008 às 16:22  
Anonymous Anônimo said...

Eu também conheci Fernando Pessoa por intermédio da Maria Bethânia. Sou grato.

Eros e Psiquê é um dos que gosto. É um poema misterioso, onde as partes de uma mesma pessoa se encontram no final.

Bethânia o diz muito bem.

28 de setembro de 2008 às 18:11  
Anonymous Anônimo said...

|Concordo com o Tatit: " Você ouve uma música do Djavan e às vezes nem sabe do que ele está falando " .

29 de setembro de 2008 às 08:43  
Anonymous Anônimo said...

" Festival do Rio 2008 "
Pena eu não " estar " carioca ...

29 de setembro de 2008 às 08:45  
Blogger Unknown said...

Eu também conheci Fernando Pessoa através de Maria Bethânia quando a assisti em " Rosa dos Ventos- Um Show Encantado". Eros e Psiquê transporta-me à "Companheira" de Luis Tatit que Zélia Duncan interpreta lindamente no show "Amigo é Casa". Não sei explicar. Quando a poesia precisar de explicação deixará de ser poesia.
Quando ao Chico não ser poeta... nada a declarar.
Abraço Mauro, parabéns por este seu Blog sempre ativo e com valiosas intervenções
Eulalia
São Paulo

29 de setembro de 2008 às 17:19  
Anonymous Anônimo said...

Concordo com Paulo César Pinheiro.
Chico é poeta, sim.
Me lembro de ter visto uma entrevista com o João Cabral feita ao Pedro Bial em que ele dizia que não gostava de música.
Em outra entrevista dele, o vi falando com entusiasmo da música que o Chico fez sobre Morte e Vida Severina.
É um feito e tanto.

Jose Henrique

30 de setembro de 2008 às 02:17  
Anonymous Anônimo said...

Mauro, tu sabe me dizer se esse filme vai passar em outros estados do Brasil?
Abraço.

1 de outubro de 2008 às 22:41  
Anonymous Anônimo said...

Apesar de todos os grandes nomes envolvidos no filme, achei meio chato. Nessa discussão entre música e poesia, nada de novo além do prazer de ver ídolos da MPB falando para as câmeras.

29 de abril de 2009 às 23:27  

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