4 de outubro de 2008

Jussara, Wisnik e Nestrovski na poesia do som

Resenha de show
Título: Projeto Interseções
Artista: José Miguel Wisnik, Jussara Silveira e Arthur
Nestrovski
Local: Sala Cecília Meirelles (RJ)
Data: 3 de outubro de 2008
Cotação: * * * * 1/2

Pianista e compositor, Zé Miguel Wisnik é dono de refinada obra de textura poética que pede vozes de técnica apurada e registro mais cool - como a voz límpida de Jussara Silveira, cantora que, à vontade, dividiu o palco com Wisnik e com o violonista (e também compositor) Arthur Nestrovski num envolvente espetáculo que embaralhou os conceitos de música e poesia, tangenciando o universo erudito. Apresentado na Sala Cecília Meirelles (RJ), dentro do projeto Interseções, o recital apresentou roteiro irretocável que combinou músicas de Wisnik e quatro versões de temas de compositores eruditos como o austríaco Franz Schubert (1797 - 1828) e o romântico alemão Robert Schumann (1810 -1856). Assinadas por Nestrovski, como títulos como Clara e Serenata, tais versões tentam com êxito se enquadrar no universo da canção brasileira. Cantadas por Jussara, com Wisnik ao piano e Nestrovski no seu virtuoso violão, estes temas responderam por alguns dos muitos momentos em que o recital beirou o sublime. E a inclusão no bloco de Morena do Mar, de Dorival Caymmi (1914 - 2008), acentuou o parentesco brasileiro buscado por tais versões.

Mesmo sem grande volume, a voz de Wisnik serve bem às suas músicas - como ficou claro logo no número de abertura, quando o compositor entoa Tempo sem Tempo. Mesmo sem estar em atividade durante parte do show, Jussara brilhou a cada vez que solta a voz, como no choro Bambino, como no Baião de Quatro Toques - em dueto com Wisnik - e como em O Último Domingo, versão de música polonesa incluída na trilha sonora do filme O Sol do Imperador. Uma clima de salutar estranheza pontuou roteiro embebido em pura poesia. Se Mortal Loucura apresenta melodia de Wisnik sobre versos de soneto do poeta barroco baiano Gregório de Matos (1636 - 1696), Anoitecer - um dos números de maior beleza - insere o poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987), do livro A Rosa do Povo, na sofisticada atmosfera musical do recital. Os poetas aprovariam.

Falante, Wisnik divertiu a platéia ao recortar a aventura (única até o momento na música brasileira) de ter aceitado a incubência de criar uma letra para melodia já pronta de Chico Buarque. Tarefa difícil, pelos sinuosos contornos melódicos do tema, intitulado Embebedado, lançado por Gal Costa (no disco Hoje, de 2005) e revivido por Wisnik com inflexões que permitiram ao espectador perceber a engenhosa sintonia entre música e letra. Entre versos de poetas como Antonio Cícero e Eucanaã, musicados tanto por Wisnik como por Nestrovski, o recital se desenrola sedutor. Sobretudo quando Jussara Silveira assume também o microfone para fazer dueto com Wisnik em músicas como Pérolas aos Poucos e, no bis, As Pastorinhas, a bissexta parceria de João de Barro, o Braguinha (1907 - 2006), com Noel Rosa (1910 - 1937). Luxo só...

Até Nelson Rodrigues (1912 - 1980) entrou na dança poética do trio. Depois de cantar A Serpente, belo tema que compôs para montagem da peça homônima do dramaturgo, Wisnik emendou na seqüência Pecado Original, a música feita por Caetano Veloso - também dentro do passional universo rodriguiano - para o filme A Dama do Lotação. Enfim, um excelente show que, ao combinar versos e melodias com acabamento de alta qualidade, expôs toda a poesia contida no som pensante de Wisnik, Jussara e Nestrovski.

10 Comments:

Blogger Mauro Ferreira said...

Pianista e compositor, Zé Miguel Wisnik é dono de refinada obra de textura poética que pede vozes de técnica apurada e registro mais cool - como a voz límpida de Jussara Silveira, cantora que, à vontade, dividiu o palco com Wisnik e com o violonista (e também compositor) Arthur Nestrovski num envolvente espetáculo que embaralhou os conceitos de música e poesia, tangenciando o universo erudito. Apresentado na Sala Cecília Meirelles (RJ), dentro do projeto Interseções, o recital apresentou roteiro irretocável que combinou músicas de Wisnik e quatro versões de temas de compositores eruditos como o austríaco Franz Schubert (1797 - 1828) e o romântico alemão Robert Schumann (1810 -1856). Assinadas por Nestrovski, como títulos como Clara e Serenata, tais versões tentam com êxito se enquadrar no universo da canção brasileira. Cantadas por Jussara, com Wisnik ao piano e Nestrovski no seu virtuoso violão, estes temas responderam por alguns dos muitos momentos em que o recital beirou o sublime. E a inclusão no bloco de Morena do Mar, de Dorival Caymmi (1914 - 2008), acentuou o parentesco brasileiro buscado por tais versões.

Mesmo sem grande volume, a voz de Wisnik serve bem às suas músicas - como ficou claro logo no número de abertura, quando o compositor entoa Tempo sem Tempo. Mesmo sem estar em atividade durante parte do show, Jussara brilhou a cada vez que solta a voz, como no choro Bambino, como no Baião de Quatro Toques - em dueto com Wisnik - e como em O Último Domingo, versão de música polonesa incluída na trilha sonora do filme O Sol do Imperador. Uma clima de salutar estranheza pontuou roteiro embebido em pura poesia. Se Mortal Loucura apresenta melodia de Wisnik sobre versos de soneto do poeta barroco baiano Gregório de Matos (1636 - 1696), Anoitecer - um dos números de maior beleza - insere o poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987), do livro A Rosa do Povo, na sofisticada atmosfera musical do recital. Os poetas aprovariam.

Falante, Wisnik divertiu a platéia ao recortar a aventura (única até o momento na música brasileira) de ter aceitado a incubência de criar uma letra para melodia já pronta de Chico Buarque. Tarefa difícil, pelos sinuosos contornos melódicos do tema, intitulado Embebedado, lançado por Gal Costa (no disco Hoje, de 2005) e revivido por Wisnik com inflexões que permitiram ao espectador perceber a engenhosa sintonia entre música e letra. Entre versos de poetas como Antonio Cícero e Eucanaã, musicados tanto por Wisnik como por Netvroski, o recital se desenrola sedutor. Sobretudo quando Jussara Silveira assume também o microfone para fazer dueto com Wisnik em músicas como Pérolas aos Poucos e, no bis, As Pastorinhas, a bissexta parceria de João de Barro, o Braguinha (1907 - 2006), com Noel Rosa (1910 - 1937). Luxo só...

Até Nelson Rodrigues (1912 - 1980) entrou na dança poética do trio. Depois de cantar A Serpente, tema que compôs para montagem da peça homônima do dramaturgo, Wisnik emendou na seqüência Pecado Original, a música feita por Caetano Veloso - também dentro do passional universo rodriguiano - para o filme A Dama do Lotação. Enfim, um excelente show que, ao combinar versos e melodias com acabamento de alta qualidade, expôs toda a poesia contida no som "pensante" de Wisnik, Jussara e Netvroski.

4 de outubro de 2008 às 21:38  
Anonymous Anônimo said...

Jussara é maravilhosa, uma das melhores cantoras desse país. Uma pena que nunca será reconhecida pelo grande público.

5 de outubro de 2008 às 00:17  
Anonymous Anônimo said...

Mauro,

Eu tive a felicidade de assistir a esse show. Realmente, foi algo sublime. Uma pena que não houve condições financeiras de gravá-lo para lançamento em DVD.

O bloco com versões em português das músicas de Schubert e Schumann, intercalado com "Morena do Mar" do Caymmi, foi absolutamente maravilhoso. Jussara Silveira realmente é uma cantora como poucas na atualidade desse país. Foi ovacionada durante vários minutos "em cena aberta", como se costuma dizer no teatro.

Eu só não gostei do final quando Wisnik cantou a sua canção "Inverno" de forma muito superficial, na levada de sambinha, que ficou muito aquém da gravação definitiva que o Rubi deu para essa mesma música, de versos tão fortes.

Uma pena que não te vi, senão teria ido te cumprimentar.

abração,
Denilson

5 de outubro de 2008 às 16:07  
Anonymous Anônimo said...

Jussara Silveira é uma das melhores cantoras surgidas nos últimos tempos!

5 de outubro de 2008 às 22:56  
Anonymous Anônimo said...

Sempre com afinação e emissão exemplares ...

6 de outubro de 2008 às 11:33  
Blogger Flávia C. said...

Por que algumas vezes o sobrenome do Arthur Nestrovski aparece "Netvroski" (inclusive no título)?

6 de outubro de 2008 às 12:04  
Blogger Mauro Ferreira said...

Flávia, grato por avisar do erro, já corrigido. É fruto do cansaço mental provocado pela maratona de filmes do Festival do Rio. Abraços, Mauro Ferreira.

6 de outubro de 2008 às 16:21  
Blogger Fabiano said...

Belo texto, Mauro. Eu estava lá e curti muito o show. Também escrevi uma resenha: dá uma olhada em http://www.movimento.com/mostraconteudo.asp?mostra=2&escolha=4&codigo=4073. Abraço!

6 de outubro de 2008 às 17:23  
Blogger Unknown said...

Mauro, eu quero um pouco desse tipo de cansaçoooo!!! =D

6 de outubro de 2008 às 21:52  
Anonymous Anônimo said...

MARAVILHOSO!

8 de outubro de 2008 às 20:36  

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