4 de outubro de 2008

Lírio desvenda Teixeira em jornada emocional

Resenha de filme
Título: O Homem que
Engarrafava Nuvens
Direção: Lírio Ferreira
Cotação: * * * * 1/2
Em exibição no Festival
do Rio 2008
* 5 de outubro, Estação
Vivo Gávea 3 (às 15h40m e
às 22h10m)

Ao som de Légua Tirana, a atriz Denise Dummont, séria, caminha pelo cemitério rumo ao túmulo do compositor Humberto Teixeira (1915 - 1979), revelando logo de cara que pouco ou nada conhece sobre a figura deste homem, que, além de ter sido advogado e parceiro de Luiz Gonzaga (1913 - 1989) na criação de grandes clássicos do cancioneiro brasileiro (entre eles, Asa Branca), veio a ser também seu pai. Assim começa O Homem que Engarrafava Nuvens, documentário produzido por Dummont, com direção firme de Lírio Ferreira e fotografia de Walter Carvalho, para descobrir e mostrar quem foi Humberto Teixeira. Ao acompanhar a jornada emocional de Dummont, Lírio desvenda boa parte do véu que cobria o homem e o artista - este, aliás, nem sempre creditado como devido quando o assunto é o repertório áureo de Gonzaga, vitalício Rei do Baião.

Em off, a voz do próprio Humberto Teixeira - extraída de depoimento biográfico prestado pelo compositor em 1977 - costura a narrativa. Nascido em Iguatu, cidade interiorana de um Ceará castigado pela seca, o artista conviveu desde sempre com o baião - ouvido em sua forma seminal nas festas e cantorias nordestinas - e levou na bagagem essa intimidade com o ritmo quando partiu para o Rio de Janeiro (RJ) com o intuito de virar médico. O filme conta que ele virou, na verdade, advogado e que - anos depois - faria a viagem de volta como candidato a Deputado Federal pelo seu Ceará. Entre uma viagem e outra, Teixeira mostrou ao mundo como se dança e compõe o baião pela voz de Luiz Gonzaga. Mas somente depois de ter suas primeiras músicas rejeitadas por estrelas da época - como Carmen Miranda (1909 - 1955) e Orlando Silva (1915 - 1978). A primeira música gravada, Sinfonia do Café, abriu caminho para o registro do samba Deus me Perdoe, sucesso na voz de Cyro Monteiro no Carnaval de 1945. Mas nenhum sucesso dessa fase inicial se comparou ao estouro do baião, que, em seu apogeu, na primeira metade dos anos 50, fez o Brasil descobrir a sanfona. A era de ouro do gênero - que coincide com a industrialização do Brasil - começou a ser formatada em 1946 com a gravação de Baião pelo conjunto Quatro Ases e Um Coringa. O baião - como ressaltam os cantores Fagner e Otto nos depoimentos inseridos no bom roteiro assinado por Lírio Ferreira - era a música que expressava os sentimentos dos nordestinos saudosos que haviam migrado para o Sul para fugir da seca e da fome. "Ou você descia para São Paulo ou subia para São Pedro", ironiza o cearense Belchior, em vã tentativa de fazer humor negro.

O documentário entremeia gravações antigas com registros contemporâneos feitos em estúdio por cantores do naipe de Caetano Veloso (Baião de Dois), Gal Costa (Adeus, Maria Fulô - com o auxílio luxuoso da sanfona de Sivuca) e Chico Buarque (Kalu, sucesso de Dalva de Oliveira que teve como musa inspiradora Mafalda, caso extra-conjugal de Teixeira). Números captados na edição do Prêmio Rival de Música que homenageou Teixeira também pontuam a narrativa. Já Asa Branca é ouvida tanto no registro estilizado do norte-americano David Byrne - para exemplificar o alcance mundial da obra musical de Teixeira - como na ruminante releitura feita em 1971 por um triste e exilado Caetano Veloso (no LP Caetano Veloso), na visão mais roqueira de Raul Seixas (1945 - 1989) e ainda na intensa interpretação apresentada por Maria Bethânia no show Dentro do Mar Tem Rio, em 2006 e 2007. Primo-irmão da Asa Branca, Assum Preto é ouvido na memorável gravação de Gal Costa entre imagens de filme sobre a cantora feito pelo cineasta Antonio Carlos Fontoura.

Se o compositor é coberto de justos elogios, o homem tem desvendada sua face mais machista quando o assunto são as mulheres oficiais. A primeira delas, Ivanira Teixeira, lembra como Humberto a fazia tirar qualquer maquiagem mais vistosa. Já a pianista Margarida Jatobá, mãe de Denise Dummont, vai mais fundo e protagoniza o momento mais revelador do filme em conversa emocionada com a filha que foi impedida de criar por ter largado Teixeira - após longo período de desentendimentos e opressão - para viver um amor com Luiz Jatobá. "Ele queria me transformar na 'mulherzinha de Humberto Teixeira'. Não deu", justifica Margarida (morta em 2007), num depoimento pungente.

Por ter tomado as dores de Teixeira na separação de Margarida, a sociedade machista da época afastou Dummont de sua mãe e a uniu ao pai. Contudo, em seu depoimento final, a atriz conta que somente se sentiu realmente próxima do genitor na véspera da morte de Teixeira, em 3 de outubro de 1979. Um almoço dominical tornou meno frouxo o laço que ligava pai e filha. Laços que se estreitam postumamente nesta bela jornada documental e emocional empreendida por Denise Dummont para jogar luz sobre a obra forte de Humberto Teixeira e expor o homem por trás dela.

3 Comments:

Blogger Mauro Ferreira said...

Ao som de Légua Tirana, a atriz Denise Dummont, séria, caminha pelo cemitério rumo ao túmulo do compositor Humberto Teixeira (1915 - 1979), revelando logo de cara que pouco ou nada conhece sobre a figura deste homem, que, além de ter sido advogado e parceiro de Luiz Gonzaga (1913 - 1989) na criação de grandes clássicos do cancioneiro brasileiro (entre eles, Asa Branca), veio a ser também seu pai. Assim começa O Homem que Engarrafava Nuvens, documentário produzido por Dummont, com direção firme de Lírio Ferreira e fotografia de Walter Carvalho, para descobrir e mostrar quem foi Humberto Teixeira. Ao acompanhar a jornada emocional de Dummont, Lírio desvenda boa parte do véu que cobria o homem e o artista - este nem sempre creditado como devido quando o assunto é o repertório áureo de Gonzaga, o vitalício Rei do Baião.

Em off, a voz do próprio Humberto Teixeira - extraída de depoimento biográfico prestado pelo compositor em 1977 - costura a narrativa. Nascido em Iguatu, cidade interiorana de um Ceará castigado pela seca, o artista conviveu desde sempre com o baião - ouvido em sua forma seminal nas festas e cantorias nordestinas - e levou na bagagem essa intimidade com o ritmo quando partiu para o Rio de Janeiro (RJ) com o intuito de virar médico. O filme conta que ele virou, na verdade, advogado e que - anos depois - faria a viagem de volta como candidato a Deputado Federal pelo seu Ceará. Entre uma viagem e outra, Teixeira mostrou ao mundo como se dança e compõe o baião pela voz de Luiz Gonzaga. Mas somente depois de ter suas primeiras músicas rejeitadas por estrelas da época - como Carmen Miranda (1909 - 1955) e Orlando Silva (1915 - 1978). A primeira música gravada, Sinfonia do Café, abriu caminho para o registro do samba Deus me Perdoe, sucesso na voz de Cyro Monteiro no Carnaval de 1945. Mas nenhum sucesso dessa fase inicial se comparou ao estouro do baião, que, em seu apogeu, na primeira metade dos anos 50, fez o Brasil descobrir a sanfona. A era de ouro do gênero - que coincide com a industrialização do Brasil - começou a ser formatada em 1946 com a gravação de Baião pelo conjunto Quatro Ases e Um Coringa. O baião - como ressaltam os cantores Fagner e Otto nos depoimentos inseridos no bom roteiro assinado por Lírio Ferreira - era a música que expressava os sentimentos dos nordestinos saudosos que haviam migrado para o Sul para fugir da seca e da fome. "Ou você descia para São Paulo ou subia para São Pedro", ironiza o cearense Belchior, em vã tentativa de fazer humor negro.

O documentário entremeia gravações antigas com registros contemporâneos feitos em estúdio por cantores do naipe de Caetano Veloso (Baião de Dois), Gal Costa (Adeus, Maria Fulô - com o auxílio luxuoso da sanfona de Sivuca) e Chico Buarque (Kalu, sucesso de Dalva de Oliveira que teve como musa inspiradora Mafalda, caso extra-conjugal de Teixeira). Números captados na edição do Prêmio Rival de Música que homenageou Teixeira também pontuam a narrativa. Já Asa Branca é ouvida tanto no registro estilizado do norte-americano David Byrne - para exemplificar o alcance mundial da obra musical de Teixeira - como na ruminante releitura feita em 1972 por um exilado Caetano Veloso (editada no disco Transa), na roqueira visão de Raul Seixas (1945 - 1989) e ainda na intensa interpretação apresentada por Maria Bethânia no show Dentro do Mar Tem Rio, em 2006 e 2007. Primo-irmão da Asa Branca, Assum Preto é ouvido na memorável gravação de Gal Costa entre imagens de filme sobre a cantora feito pelo cineasta Antonio Carlos Fontoura.

Se o compositor é coberto de justos elogios, o homem tem desvendada sua face mais machista quando o assunto são as mulheres oficiais. A primeira delas, Ivanira Teixeira, lembra como Humberto a fazia tirar qualquer maquiagem mais vistosa. Já a pianista Margarida Jatobá, mãe de Denise Dummont, vai mais fundo e protagoniza o momento mais revelador do filme em conversa emocionada com a filha que foi impedida de criar por ter largado Teixeira - após longo período de desentendimentos e opressão - para viver um amor com Luiz Jatobá. "Ele queria me transformar na 'mulherzinha de Humberto Teixeira'. Não deu", justifica Margarida (morta em 2007), num depoimento pungente.

Por ter tomado as dores de Teixeira na separação de Margarida, a sociedade machista da época afastou Dummont de sua mãe e a uniu ao pai. Contudo, em seu depoimento final, a atriz conta que somente se sentiu realmente próxima do genitor na véspera da morte de Teixeira, em 3 de outubro de 1979. Um almoço dominical tornou meno frouxo o laço que ligava pai e filha. Laços que se estreitam postumamente nesta bela jornada documental e emocional empreendida por Denise Dummont para jogar luz sobre a obra forte de Humberto Teixeira e expor o homem por trás dela.

4 de outubro de 2008 às 19:41  
Anonymous Anônimo said...

Mauro,
Adoro o blog!
Só uma correção: Asa branca foi gravada no álbum de 1971 do Caetano, não no Transa.

Abraço!

5 de outubro de 2008 às 12:50  
Anonymous Anônimo said...

Caro Mauro,
Admiro seu blog, acho-o limpo direto e coerente.
Gostaria de saber como faço para adquirir uma cópia em DVD do Documentário "O Homem que engarrafava nuvens", pois faço mestrado em História social e meu tema é Luiz Gonzaga e a formação da identidade nordestina.
Toda informação será bem vinda.
Forte abraço,
Alba Marisa
email albamarisa.amorim@yahoo.com.br

26 de março de 2009 às 13:33  

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